Alguém na Fazenda acorda à noite com a impressão de escutar um sussurro na sala de jantar. Quando a pessoa volta a dormir a conversa revive.
– Vejam só ela se gabando de que vivia as margens de um lindo Igarapé, diz uma cadeira para outra.
– Eu é que tenho motivo de me orgulhar de onde vim, no meio da floresta.
– Recebi o selo de madeira de lei. Estou aqui por acaso. Tinha sido selecionada para a casa real da Dinamarca, um país distante. Já ouviram falar? As outras cadeiras balançaram a cabeça negando. Estavam emudecidas. Achavam discretamente que o rompante das duas amigas era exagero. Mas Deus as livre de inflamar essa discussão. A da direita suspirou sem se atrever a comentar. A segunda à direita também. A terceira à direita tentou conciliar:
– Todas viemos de lugares lindos. Você, por exemplo, pode nos contar de onde veio? Quase cochilando a que tinha sido interpelada levou um bruto susto e despertando falou, se indagando por que não a deixavam em paz.
– Ve … venho… gaguejou, de uma nogueira a beira do Rio Purus.
– Estão vendo? A primeira à esquerda, muito polêmica, volta a se manifestar.
– Pois, para provar o que digo vou mostrar a vocês. Não me comparo a toda cadeira. É meu jeito, meu caráter, temperamento… Chamem do que quiserem. Sou diferente.
– Quando a menina abrir o mapa aqui sobre a mesa vocês vão confirmar que estou falando a verdade. E indignada continuou seu discurso:
– Respeito você como respeito a todas. Disse ela. Estou dizendo apenas que tenho saudades do ar livre. Essa afirmação não devia magoar ninguém.
A segunda à esquerda, inconformada, voltou a replicar.
– E aqui, não nos levam para o jardim às vezes? Assim evoluía a discussão quando a velha mesa, impaciente, se intromete na conversa:
– Meninas, meninas, precisamos de harmonia para sobreviver. Se a gente ficar se chocando, se alguma de nós ficar imprestável, vai para o depósito, no melhor dos casos. Podemos ser lançadas à rampa, ao mundurú, ao lixo…
– E vocês sabem o que acontece lá? Fez uma pergunta retórica.
– O fogo!!! exclamaram três em coro, desesperadas, já antevendo trêmulas esse desfecho…
A mesa, satisfeita com o resultado da sua psicologia, continuou.
– Não sabem que o equilíbrio depende de cada uma se colocar no lugar do outro!?
– Sabemos, gritaram todas, até as que estavam brigando antes. A mesa, triunfante, continuou o discurso:
– Todas nós somos importantes. Vocês recebem as pessoas, eu recebo os alimentos. Pensam que é confortável suportar os pratos quentes? Tenho até uma queimadura aqui num cantinho
– Vocês vão lá fora, para a grama, com frequência, desfrutam da linda paisagem com a melodia dos pássaros e até a visita de bichinhos: patos e marrecos, perus, coelhos e cabritos. Avistam as serras azuladas as longe…
– E eu? Só vejo o jardim pela fresta da porta. Me lembro de terem me levado lá só uma vez na vida, na Primeira Eucaristia da menina.
– Sob as arvores, senti o cheiro das rosas. Que perfume! Espalharam pétalas aveludadas sobre a minha toalha, me decoraram com iguarias, docinhos embrulhados em celofane e laçarotes coloridos. Eram tantas as compotas, biscoitos, sequilhos e canapés… E o bolo confeitado, então…!!! Decorado com bolinhas prateadas e passarinhos de goma, biquinho vermelho… O glacê recebia no topo uma bonequinha com o vestido igual ao da menina. E a mesa, tagarela como sempre, continuou:
– A porcelana de Limoges, então, era incomum, não era, armário? E a crystaleira, que guardava a louça, já bem caduca, confirmou baixando os olhos. Era de mogno, mas nem ousava dizer. E era do tempo em que o português escrevia o “i” com “y”, e o “f” com “ph”. E ia acrescentando – E os cristais da Boêmia também, mas ficou quieta, não queria inflamar a discussão… Estava velha demais pra isso.
Então a mesa, se achando soberana, continuou:
– Até cobriram minhas pernas com uma toalha finíssima, toda recortada com um bordado francês… Ah, lembrei, Richilieu, o nome dele. Recordo cada detalhe. Foi estonteante! Como fui feliz! Apareci até junto à menina e os pais, em um retrato ali emoldurado sobre o piano.
– Estão vendo? E agora? O que me resta? Se ainda quiser reviver a liberdade do ar livre da minha origem? É preciso sonhar com a próxima festa. Fico desejando e imaginando a celebração de casamento dela…
– Gente! Disse o velho piano lá da sala de estar, com a qual a sala de jantar se comunicava por um belo arco. De onde estava dava pra avistar a todas, cadeiras e mesa. Ele tinha aproveitado um segundo de intervalo na discussão.
– Gente! Repetiu. Peço só um minuto de atenção.
A mesa parou de falar
– Por favor. Escutem. Continuou o piano.
– Cada qual com seu destino!
As cadeiras prestaram atenção.
– Nem discuto mais minha origem, continuou o piano. Isso é coisa do passado. Sei que venho de um nobre jacarandá. Meus descendentes estão em perigo de extinção. É doloroso relembrar isso. Portanto faço um esforço para apagar a memória. Estou conformado! Às vezes me desanimo… Ninguém toca mais nenhuma melodia nas minhas teclas. Já estão amareladas. Faz tempo que elas não ganham nenhum polimento. Só lustram minha madeira com óleo de peroba e isso já me faz feliz. Os dedinhos macios da menina sobre minhas costas é uma carícia. E guardo a memória das partituras. Isso eu desfruto… Tenho esperança na nova geração. As crianças estão crescendo. Qualquer dia, uma toca uma melodia. Tenho todas na cabeça. Sei disso porque ouvi um cantarolando e dizendo que vai compor. Confesso a vocês que criei alma nova. E prosseguiu ele.
– E você, minha querida mesa, quero dar uma palavrinha com você. Já se esqueceu da sua importância? Quantos tecidos de seda, de renda, tecidos luxuosos até do estrangeiro foram cortados aí? Quantos vestidos a vó já não confeccionou? Está aqui a máquina de costura que não me deixa mentir.
– É verdade, respondeu, prestativa, a máquina.
E quantas conversas, diálogos, acordos, assinaturas você já não presenciou? E os estudos dos meninos? As redações, as memorizações, a quantidade de livros que já passaram por você…!!!
– Não é à toa que você é tão sabida, conhece tantas palavras bonitas!! A mesa baixou a vista, envaidecida. E continuou muda. Era melhor silenciar agora. Reconhecia que se excedera.
De repente o relógio tocou umas seis badaladas anunciando o amanhecer, já cantado antes pelo galo Coricó no terreiro da Fazenda.
– Vamos descansar um pouco, interrompeu o relógio porque já já vai começar o café da manhã.
– Falou a voz da experiência, exclamou o piano com tanta ênfase que lhe arrebentou um bordão junto a uma corda. – TOIIIINNG
– Pronto, agora me levam pro ferro velho!!! choramingou o piano.
– Que nada.! Consolou a bouganville enroscada em uma coluna da varanda que escutara até ali, em silêncio.
– Com essa imponência toda e a sonoridade dessa cauda maravilhosa!!!???. Vão chamar logo um afinador e um técnico para consertá-lo. Espere e verá! Disse a bouganville.
– É verdade. A mim mesmo, já me consertaram duas vezes quando minhas cordas pifaram, disse o relógio. Vão fazer o mesmo a você.
– Sei não…!!! disse o piano. Você é muito mais importante porque regula toda a vida da casa. Você disciplina as crianças. Cronometra os horários da alimentação, o sono, as tarefas dos trabalhadores, o descanso. Eu só sirvo para os dias de festa, amigo.
– Desse conserto me recordo, continuou o piano. Foi sobre a mesa! exclamou, enciumado, sem esconder a paixão que tinha por ela.
– Deixe disso, de onde você está, pode apreciá-la toda. Retruca o relógio. – E a lealdade dela, que só tem olhos para você, não conta???!!!
– Disso estou certo, disse o piano, e sua superfície lançou um brilho para a mesa, atenta à conversa dos dois.
– Mas daqui não posso ver as piscadelas do seu flerte para ela …!!! Continuou o piano. Só escuto os suspiros, e badaladas a cada meia hora….
– Você não deixa nem a coitadinha da minha amada cochilar … desabafou ele.
– Perdão. Confesso. Disse o relógio. Mas meu amor é platônico. Você já ficou bem juntinho dela, quando essa sala não possuía separação, lembra? Falou e arguiu o piano:
– Como você sabe disso? Quis saber o relógio, pego de surpresa na malandragem. E se atrapalhando todo, adiantou dois minutos, depois atrasou um.
– Pelos mexericos das cadeiras…!!! Elas estão em todo canto! Respondeu o piano…
– Ah! Mas veja o destino! Ponderou o relógio. Enquanto você, sua amada e eu, somos tocados pelas mãos, a extremidade mais delicada do corpo, qual a parte dele que as cadeiras sustentam, ehm?
– É mesmo, hahahaha, concordou o piano se rindo da gaiatice do relógio. Nem tinha pensado nisso!!! Genial!! E deixando por menos a rixa, fez as pazes com o outro.
– Bem feito para essas fofoqueiras! disse o relógio, se sentindo vingado!
[PS1]