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Empatia

O camelo e o urso polar

Para Nicholas e Mariana

No tempo em que os continentes eram próximos, um urso polar aproximando-se do limite da terra gelada, gritou para o outro lado:

– Amigo Camelo, como você é feliz! Quem me dera poder usufruir um pouco desse calor! Vamos trocar de lugar?

– Tirou as palavras da minha boca, amigo! disse o camelo. Não vejo a hora de me refrescar desse calorão do deserto.

– Que terra linda a sua! Posso imaginar, com o delírio que o sol provoca na nossa cabeça… Falou o  urso. – … a miragem de belas ursas vindo em minha direção! E a esfinge! que maravilha! As pirâmides então! Encantadoras! E enterrar os pés na areia fofa e morna do deserto! Não vejo a hora!

– Oh meu irmão. Não seja por isso! Vamos nos mudar agora mesmo. Mas, estou curioso!!! Como o amigo tem todas essas informações?

– Pelos pássaros! Eles bisbilhotam pra cima e pra baixo. Voam pra lá e pra cá. E trazem notícias. Como gostam de boatos, novidades!

E o urso polar saltou pro deserto do Saara e o camelo de um pulo alcançou o Polo Norte.

E o urso refestelou-se logo na areia morna. Na primeira semana só sabia apreciar boquiaberto as odaliscas dançando nos salões.

Depois quando atolou e precisou ser puxado, o calor começou a subir-lhe à cabeça.

E o camelo estirou-se na neve.

– Que delícia! Pensou. Estar livre de toda aquela carga. Nem acredito! E se meteu numa caverna. Depois de uma semana deitado sem exercitar-se:

– Ai, Doem-me todos os ossos. Que reumatismo brabo!

– Oh meu irmão, gritou pro outro lado. Você está pensando o mesmo que eu?

– Coincidência, né? Tirou o pensamento da minha cachola, irmão! E retornaram aos lugares de antes.

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Altruísmo Amizade Empatia

Laurita Buscapé e Zezinho pinga-fogo

Zezinho e Laurita arengavam muito

– Seu laço está torto, criticava ele.

– Sua camisa está amarrotada, implicava ela.

Por isso os colegas apelidaram os dois de Zezinho pinga-fogo e Laurita cospe brasa. Mas isso foi depois.

Desde o começo do ano escolar, frequentavam a mesma escola, mas não sabiam. Eram vizinhos da mesma região, mas não sabiam. Os pais dos dois moravam em casas de campo, isoladas.

Uma vez dia na cidade, Laura pisou sem querer na lama na coxia, que salpicou na meia de Zezinho. Nem pensou em pedir desculpa, nem o menino pensou em desculpar, se arreliou e puxou o laço de uma trança dela. – Pinga-fogo! Berrou a menina. – Cospe brasa! gritou o menino. Assim começaram a brigar antes mesmo de saberem o nome um do outro.

Um dia, ao saírem da escola por acaso se encontraram – Então você estuda aqui?? Perguntou Laurita, indignada.

-Ah! Vou sair dessa escola, reagiu ele!

– Que azar estudar na mesma escola que você!!! Respondeu ela. E seguiram pelo mesmo caminho:

– Você está me seguindo?  Encrenqueira!

– Estou indo para casa! Disse ela.

– Ah, então vou pedir ao meu pai pra gente se mudar daqui!  Meu pai é pedreiro e encanador e tem freguesia na região. E Chutou de raiva, um cão que se aquecia ao sol.

– Meu pai é bombeiro e responsável em apagar os incêndios do local, disse ela e, de raiva, queimou com o olhar a asa de um passarinho que roubara a minhoca para os filhotes do outro.

-Meu pai é conhecido em toda a região, disse ele. E chamuscou com o olhar o rabo de um gato perseguindo um pequeno rato.

Na escola o bebedouro não estava funcionando. As crianças passavam sede. Tinha estourado um cano da instalação. Chamaram o Sr. Zezinho, o encanador e num instante estava tudo consertado.  Zezinho ficou orgulhoso. Um dia deu um curto-circuito na sala de aula, causando um fogaréu sobre as cadeiras. Sr. Lauro, o bombeiro, debelou o fogo num instante. Laurita ficou envaidecida.

Um dia a cidade de Encrencópolis acordou com um estrondo. O vulcão Espalha-fumo tinha entrado em erupção. As lavas escorriam pelos lados destruindo as casas próximas, mas felizmente não vitimou ninguém. Era de manhã. Os habitantes tinham saído pra trabalhar. Os que tinham casa ofereciam hospedagem aos desabrigados. Laurita e Zezinho, comovidos, dividiram cordialmente seus dormitórios, camas e brinquedos. Estavam felizes com tantos amiguinhos pra brincar. Percebendo o valor da amizade, agora só se tratavam com carinho:

– Queres um biscoito, Laurita?

– Sim, obrigada, Zezinho. Tome essa maçã.

A cidade passou a se chamar Alegrópolis e o vulcão, esse, fechou suas narinas chamejantes ali e foi fumar numa região desabitada. E nas suas encostas nasceram florezinhas lindas que os camponeses vendiam na feira aos domingos. E todos foram amigos para sempre.

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Colaboração Empatia

Conversa animada

Alguém na Fazenda acorda à noite com a impressão de escutar um sussurro na sala de jantar. Quando a pessoa volta a dormir a conversa revive.

 – Vejam só ela se gabando de que vivia as margens de um lindo Igarapé, diz uma cadeira para outra.

 – Eu é que tenho motivo de me orgulhar de onde vim, no meio da floresta.                                                                                   

 – Recebi o selo de madeira de lei. Estou aqui por acaso. Tinha sido selecionada para a casa real da Dinamarca, um país distante. Já ouviram falar? As outras cadeiras balançaram a cabeça negando. Estavam emudecidas. Achavam discretamente que o rompante das duas amigas era exagero. Mas Deus as livre de inflamar essa discussão. A da direita suspirou sem se atrever a comentar. A segunda à direita também. A terceira à direita tentou conciliar:

 – Todas viemos de lugares lindos. Você, por exemplo, pode nos contar de onde veio? Quase cochilando a que tinha sido interpelada levou um bruto susto e despertando falou, se indagando por que não a deixavam em paz.

 – Ve … venho… gaguejou, de uma nogueira a beira do Rio Purus.

 – Estão vendo?  A primeira à esquerda, muito polêmica, volta a se manifestar.

 – Pois, para provar o que digo vou mostrar a vocês. Não me comparo a toda cadeira. É meu jeito, meu caráter, temperamento… Chamem do que quiserem. Sou diferente.

 – Quando a menina abrir o mapa aqui sobre a mesa vocês vão confirmar que estou falando a verdade. E indignada continuou seu discurso:

 – Respeito você como respeito a todas. Disse ela. Estou dizendo apenas que tenho saudades do ar livre. Essa afirmação não devia magoar ninguém.

A segunda à esquerda, inconformada, voltou a replicar.

 – E aqui, não nos levam para o jardim às vezes?  Assim evoluía a discussão quando a velha mesa, impaciente, se intromete na conversa:

 – Meninas, meninas, precisamos de harmonia para sobreviver. Se a gente ficar se chocando, se alguma de nós ficar imprestável, vai para o depósito, no melhor dos casos. Podemos ser lançadas à rampa, ao mundurú, ao lixo…

 – E vocês sabem o que acontece lá? Fez uma pergunta retórica.

 – O fogo!!! exclamaram três em coro, desesperadas, já antevendo trêmulas esse desfecho…

A mesa, satisfeita com o resultado da sua psicologia, continuou.

 – Não sabem que o equilíbrio depende de cada uma se colocar no lugar do outro!?

 – Sabemos, gritaram todas, até as que estavam brigando antes. A mesa, triunfante, continuou o discurso:

 – Todas nós somos importantes. Vocês recebem as pessoas, eu recebo os alimentos. Pensam que é confortável suportar os pratos quentes? Tenho até uma queimadura aqui num cantinho  

 – Vocês vão lá fora, para a grama, com frequência, desfrutam da linda paisagem com a melodia dos pássaros e até a visita de bichinhos: patos e marrecos, perus, coelhos e cabritos. Avistam as serras azuladas as longe…

 – E eu? Só vejo o jardim pela fresta da porta. Me lembro de terem me levado lá só uma vez na vida, na Primeira Eucaristia da menina.

 – Sob as arvores, senti o cheiro das rosas. Que perfume! Espalharam pétalas aveludadas sobre a minha toalha, me decoraram com iguarias, docinhos embrulhados em celofane e laçarotes coloridos. Eram tantas as compotas, biscoitos, sequilhos e canapés… E o bolo confeitado, então…!!! Decorado com bolinhas prateadas e passarinhos de goma, biquinho vermelho… O glacê recebia no topo uma bonequinha com o vestido igual ao da menina. E a mesa, tagarela como sempre, continuou:

 – A porcelana de Limoges, então, era incomum, não era, armário? E a crystaleira, que guardava a louça, já bem caduca, confirmou baixando os olhos. Era de mogno, mas nem ousava dizer. E era do tempo em que o português escrevia o “i” com “y”, e o “f” com “ph”. E ia acrescentando – E os cristais da Boêmia também, mas ficou quieta, não queria inflamar a discussão… Estava velha demais pra isso.

Então a mesa, se achando soberana, continuou:

 – Até cobriram minhas pernas com uma toalha finíssima, toda recortada com um bordado francês… Ah, lembrei,  Richilieu, o nome dele. Recordo cada detalhe. Foi estonteante! Como fui feliz! Apareci até junto à menina e os pais, em um retrato ali emoldurado sobre o piano.

 – Estão vendo? E agora? O que me resta? Se ainda quiser reviver a liberdade do ar livre da minha origem? É preciso sonhar com a próxima festa. Fico desejando e imaginando a celebração de casamento dela…

 – Gente!  Disse o velho piano lá da sala de estar, com a qual a sala de jantar se comunicava por um belo arco. De onde estava dava pra avistar a todas, cadeiras e mesa. Ele tinha aproveitado um segundo de intervalo na discussão.

 – Gente! Repetiu. Peço só um minuto de atenção.

A mesa parou de falar 

 – Por favor. Escutem. Continuou o piano.

 – Cada qual com seu destino! 

As cadeiras prestaram atenção.

 – Nem discuto mais minha origem, continuou o piano. Isso é coisa do passado. Sei que venho de um nobre jacarandá. Meus descendentes estão em perigo de extinção. É doloroso relembrar isso. Portanto faço um esforço para apagar a memória. Estou conformado! Às vezes me desanimo… Ninguém toca mais nenhuma melodia nas minhas teclas. Já estão amareladas. Faz tempo que elas não ganham nenhum polimento. Só lustram minha madeira com óleo de peroba e isso já me faz feliz. Os dedinhos macios da menina sobre minhas costas é uma carícia. E guardo a memória das partituras. Isso eu desfruto… Tenho esperança na nova geração. As crianças estão crescendo. Qualquer dia, uma toca uma melodia. Tenho todas na cabeça. Sei disso porque ouvi um cantarolando e dizendo que vai compor. Confesso a vocês que criei alma nova. E prosseguiu ele.

 – E você, minha querida mesa, quero dar uma palavrinha com você. Já se esqueceu da sua importância? Quantos tecidos de seda, de renda, tecidos luxuosos até do estrangeiro foram cortados aí? Quantos vestidos a vó já não confeccionou? Está aqui a máquina de costura que não me deixa mentir.

 – É verdade, respondeu, prestativa, a máquina.

E quantas conversas, diálogos, acordos, assinaturas você já não presenciou? E os estudos dos meninos? As redações, as memorizações, a quantidade de livros que já passaram por você…!!!

 – Não é à toa que você é tão sabida, conhece tantas palavras bonitas!! A mesa baixou a vista, envaidecida. E continuou muda. Era melhor silenciar agora. Reconhecia que se excedera.

De repente o relógio tocou umas seis badaladas anunciando o amanhecer, já cantado antes pelo galo Coricó no terreiro da Fazenda.

 – Vamos descansar um pouco, interrompeu o relógio porque já já vai começar o café da manhã.

 – Falou a voz da experiência, exclamou o piano com tanta ênfase que lhe arrebentou um bordão junto a uma corda. – TOIIIINNG

 – Pronto, agora me levam pro ferro velho!!! choramingou o piano.

– Que nada.! Consolou a bouganville enroscada em uma coluna da varanda que escutara até ali, em silêncio.

 – Com essa imponência toda e a sonoridade dessa cauda maravilhosa!!!???. Vão chamar logo um afinador e um técnico para consertá-lo. Espere e verá! Disse a bouganville.

 – É verdade. A mim mesmo, já me consertaram duas vezes quando minhas cordas pifaram, disse o relógio. Vão fazer o mesmo a você.

 – Sei não…!!! disse o piano. Você é muito mais importante porque regula toda a vida da casa. Você disciplina as crianças. Cronometra os horários da alimentação, o sono, as tarefas dos trabalhadores, o descanso. Eu só sirvo para os dias de festa, amigo.

 – Desse conserto me recordo, continuou o piano. Foi sobre a mesa! exclamou, enciumado, sem esconder a paixão que tinha por ela.

 – Deixe disso, de onde você está, pode apreciá-la toda. Retruca o relógio. – E a lealdade dela, que só tem olhos para você, não conta???!!!

 – Disso estou certo, disse o piano, e sua superfície lançou um brilho para a mesa, atenta à conversa dos dois.

 – Mas daqui não posso ver as piscadelas do seu flerte para ela …!!! Continuou o piano. Só escuto os suspiros, e badaladas a cada meia hora….  

 – Você não deixa nem a coitadinha da minha amada cochilar … desabafou ele.

 – Perdão. Confesso. Disse o relógio. Mas meu amor é platônico. Você já ficou bem juntinho dela, quando essa sala não possuía separação, lembra? Falou e arguiu o piano:

 – Como você sabe disso? Quis saber o relógio, pego de surpresa na malandragem. E se atrapalhando todo, adiantou dois minutos, depois atrasou um.

 – Pelos mexericos das cadeiras…!!! Elas estão em todo canto! Respondeu o piano…

 – Ah! Mas veja o destino! Ponderou o relógio. Enquanto você, sua amada e eu, somos tocados pelas mãos, a extremidade mais delicada do corpo, qual a parte dele que as cadeiras sustentam, ehm?  

 – É mesmo, hahahaha, concordou o piano se rindo da gaiatice do relógio. Nem tinha pensado nisso!!! Genial!! E deixando por menos a rixa, fez as pazes com o outro.

 – Bem feito para essas fofoqueiras! disse o relógio, se sentindo vingado!


 [PS1]

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